Boletim Outras Palavras
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Por Arlindenor Pedro*
Joseph Campbell me parece aquele tipo de sujeito com quem a gente gostaria de sentar em um lugar agradável e dividir um papo, uma prosa, sobre o sentido da vida e do universo. Uma figura especial, dessas que deixam um rastro por onde passam, com ensinamentos que fluem em palavras simples e proveitosas, raras nos dia de hoje.
Embora, inicialmente tenha começado seus estudos na área da biologia e da matemática, esse norte-americano de Nova York, nascido em 1904, dirigiu os seus estudos acadêmicos para a literatura inglesa e literatura medieval, tema de seu mestrado na Universidade de Columbia.
Porém, o que o tornou mundialmente conhecido foi ter-se tornado uma das maiores autoridades mundiais sobre os mitos das diversas culturas humanas. Foi uma inclinação que se desenvolveu desde os tempos de infância, quando tomou contato e se apaixonou pelo modo de vida dos povos que povoaram a América antes da chegada dos europeus. Esta paixão foi incentivada por seu pai, que o levava frequentemente ao Museu Americano de História Natural de Nova York, onde, maravilhado, tomou contato com impressionantes coleções antropológicas.
Sua vasta cultura, adquirida em anos de pesquisas sobre os mitos de inúmeras sociedades, permitiram que formulasse ideias originais sobre a similaridade entre os povos, em sua relação com o cosmos. Tais noções nos convidam a buscar uma nova forma de interpretar a nossa gênese.
Em nossa diversidade, ele acentua, somos um único povo – o povo terrestre – pois do alto, do espaço sideral, a terra é vista sem fronteiras políticas, sem barreiras que impeçam a nossa inter-relação.
Seu livro mais famoso é o “Herói de Mil Faces”, editado em 1949. Influenciado por seu autor preferido, Jayme Joyce, Campbell desenvolve a conhecida teoria do “Monomito”, estrutura lógica presente de alguma forma na demonstração dos mitos, nas mais diversas culturas. Mas, ele é também autor de muitas outras obras, de extremo valor. Algumas têm clara influência de Thomas Man e de artistas modernistas como Picasso, Paul Klee e outros, com os quais teve contato na Europa, nos anos 1920, um momento de grande efervescência cultural no velho continente. Ali, tomou contato com os trabalhos de Sigmund Freud, Carl Jung e Zimmer. Tornou-se amigo de Juddu Krishnamurti, que o colocou em contato com a filosofia e mitologia indiana.
Em 1988, a TV Cultura exibiu para o público brasileiro uma entrevista concedida por Joseph Campbell para o conhecido jornalista Bil Moyers. A conversa teve como cenário o Rancho Skywalker, de George Lucas. Fez grande sucesso quando de sua apresentação na TV americana.
É importante notar que George Lucas tinha utilizado várias das ideias de Campbell em sua saga cinematográfica: “Guerra nas Estrelas”. Servira-se, em especial, do conceito da “Força”, característica mística que tanto encantou os que viram o filme. Essa entrevista, que tomou o título de “O Poder do Mito”, foi mais tarde transformada em DVDs, e em um livro, tornando-se material preciosíssimo. Logo depois, Campbell faleceu, devido às complicações de um câncer.
Na entrevista, que mais parece um bate papo em estilo bem humorado, tomamos contato com as histórias desse homem singular, que desenvolve suas ideias de forma simples, mas quase obriga nossa imaginação a divagar nos temas propõe.
Campbell nos leva ao mundo dos sonhos, do não dito, do improvável – fora do racional a que estamos submetidos. Não o faz numa construção individual, mas por meio da descrição dos mitos, das lendas, dos costumes dos mais variados povos do planeta.
Embora o livro O Poder do Mito seja muito interessante, na entrevista para o cinema as imagens, que se sobrepõem à entrevista, permitem que mergulhemos num mundo fantástico. Um destes momentos é aquele em que Campbell nos fala das pinturas rupestres das cavernas francesas que visitou.
Surgem, então, perguntas. Para que serviam? Por que foram feitas propositalmente em um lugar tão escuro? Por que só podem ser vistas com a iluminação das tochas? Ele responde. Não exerceriam o mesmo papel que as catedrais, com seus vitrais, representam para nós? Não poderiam ser locais de meditação, com a atmosfera artística suscitada pela beleza das pinturas, apresentadas aos jovens caçadores numa reverência dos homens aos animais que iriam abater?
O fato é que, no mundo racional da sociedade contemporânea, nos afastamos cada vez mais dos sonhos e não entendemos bem o papel dos mitos, dos heróis e das cerimônias rituais, reguladoras das práticas sociais. Perdemos o sentido das metáforas apresentadas no filme. Não sabemos desvelá-las e as achamos primitivas. Por outro lado, vemos que as religiões transformaram os mitos em histórias, que têm que ser interpretadas literalmente. Para Campbell, “quando o mito é confundido com a história, ele deixa de aplicar-se à vida interior do homem”.
Nesse mundo desencantado (segundo Weber), não existe mais lugar para sonhos. Numa vida corrida, em um espaço cada vez mais segmentado, onde a totalidade foi perdida e o próprio ser humano perdeu sua essência, o mito foi sepultado e não explica mais nada. Foi substituído pelo deus da ciência, e fora dela só existe o lugar para a fé religiosa.
O herói foi estilizado e montado em parâmetros políticos que atendem aos interesses individuais de parte da sociedade, em um contexto temporal definido. Não pertence às necessidades comuns do povo, sustenta-se graças à propaganda.
Os gregos antigos procuravam estabelecer o equilíbrio entre o deuses Apolo (a razão, a certeza, a realidade, a ciência, o igual) e Dionísio (o instinto, a dúvida, a imaginação, o mito, o diferente). A busca desse equilíbrio espantava o helenista Werner Jaeger: “ … É para a historia das religiões um mistério a estreita vizinhança que no culto délfico une Apolo e Dionísio” . Mas tal equilíbrio, era o que permitia a esse grego alcançar a profundidade de um homem total – além da natureza, além do próprio homem, num espaço infinito.
Com o tempo, desfez-se esse equilíbrio, prevalecendo o homem socrático-platônico que abre caminho para a sociedade racional dos tempos atuais.
Derrotados os mitos seculares, e como a ciência não preenche a necessidade dos sonhos, levando-nos para um mundo estéril – sem criatividade, sem perspectiva de um futuro que não seja dentro dos parâmetros da sociedade de mercado –, caminhamos para sociedades erigidas em torno da fé, e por consequência, da intolerância.
Não é fora de sentido, portanto, prevermos grandes embates religiosos no futuro. Neste cenário, novos profetas disputarão a hegemonia do mundo globalizado. Sem política secular, prevalecem os valores religiosos.
Joseph Campbell, ao contrário, nos conduz à busca da felicidade dentro de nós mesmos. Não procura dividir o mundo entre o bem e o mal. Sustenta, apoiado na experiência dos mitos da humanidade, que a vida é composta de valores opostos, dentro de uma mesma realidade – tudo com suas importância específica. “Temos um deus dentro de nós, que convive com um demônio, e quando extirpamos esse demônio (cita Nietzsche) talvez estejamos extirpando o melhor de nós”. Provavelmente, venha daí, sua grande popularidade entre os jovens hippies dos anos sessenta.
Ele e outros mudaram o pensamento de uma geração que antes cultuava heróis como Búfalo Bill. A mudança influenciou, inclusive, importantes roteiristas de Hollywood, que passaram a retratar as comunidades pré-colombianas, africanas e asiáticas, de outra forma.
Campbell nos fala na linguagem usada também por Darcy Ribeiro, pelos irmãos Villas-Boas, por Sérgio Buarque de Hollanda, os modernista de 1922, os jovens da Tropicália e todos os que ressaltaram as diferenças e aspectos peculiares de nossa cultura, advindas das comunidades primitivas e da grandes civilizações africanas, para as quais a arte é um elemento fundamental na busca de valores libertários.
No mundo contemporâneo, acredito, os que exercem a arte livre, fora do controle da sociedade da mercadoria, são os arautos do novo que precisa ser construído e que, embora ainda não mostre os seus contornos, pode ser desejado e sentido por almas sensíveis. É uma batalha que se trava no plano subjetivo e não no mundo da matéria – pois este foi submetido, como um todo, à lógica do consumo.
Os artistas que vivem intensamente o mundo dos sonhos, do não dito, do ainda não realizado, podem intuir e antecipar, no presente, o futuro. “Astuciam” esse novo mundo, estabelecendo um nexo entre as potencialidades ainda-não-manifestas e a atividade criadora da “consciência-antecipadora” (Ernest Bloch). Colocam abaixo o axioma segundo o qual a propriedade é eterna e o dinheiro, como instrumento mediador entre o homem e a natureza, sempre existirá.
Superadas estas barreiras, poderemos sair da pré-história da humanidade, alcançando uma nova fase de explosão criativa, própria do equilíbrio entre Apolo e Dionísio.
Serra da Mantiqueira, abril de 2012.
* Arlindenor Pedro é professor de História, funcionário público e especialista em Projetos Educacionais. Anistiado por sua oposição ao Regime Militar, atualmente dedica-se à produção de flores tropicais na Região das Agulhas Negras.
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antropologia, ciência, crise da razão, mito