André Camargo · Follow
Published in · 11 min read · Oct 10, 2016
Antes de embarcar em qualquer jornada, faça a pergunta: Este caminho tem um coração? Se a resposta é não, você saberá, e então você deve escolher outro caminho. O problema é que ninguém faz a pergunta; e quando uma pessoa finalmente se dá conta de que tomou um caminho sem um coração, o caminho está a ponto de aniquilá-lo. Nesse momento, muito poucas pessoas conseguem parar para deliberar, e abandonar aquele caminho. Um caminho sem um coração nunca é agradável. Você precisa dar duro só para aceitá-lo. Por outro lado, um caminho com um coração é fácil; ele não exige que você se esforce para gostar dele.
Carlos Castaneda (tradução de minha autoria)
por André Camargo
Você tem uma filosofia de vida? Um conjunto de visões, de crenças e princípios a respeito de como viver?
Sei que pensar nisso não é muito comum nos dias de hoje, mas tenho achado cada vez mais importante trazer essas crenças e princípios para a consciência e buscar clareza. Assim a gente evita perder-nos de nós mesmos.
Qual é sua filosofia de vida? (se estiver no pique, me conte depois, lá nos comentários)
Joseph Campbell é o cara que criou aquela história da ‘Jornada do Herói’. É também o cara daquele documentário incrível, ‘O Poder do Mito’. Já ouviu falar?
Eu gosto muito. :)
Sabe aquela pilha de livros que você morre de vontade de ler, mas nunca dá tempo? Essa pilha só cresce, né?
Imagina que o cara tava lá, contrariado com as exigências arbitrárias do doutorado, e resolveu largar a coisa toda. Aí, alugou um casebre no meio do mato e passou ali, sozinho, os cinco anos seguintes.
Fazendo o quê?
Lendo.
9 horas por dia, todos os dias.
Segundo ele, o período de estudo e recolhimento foi a base de toda sua vida futura, assim como do conjunto de seu pensamento.
O cara leu todos os livros que ele queria, do jeito que ele queria, no tempo dele.
Uau.
Essa é uma passagem emblemática na biografia do cara. Como você verá, o pensamento de Joseph Campbell é um monumento à coragem de viver a vida nos próprios termos.
Acho que existe valor não apenas em compartilhar minhas próprias ideias, mas também minhas fontes de inspiração. Assim você conhece melhor meu jeito de pensar e também, quem sabe, chega a conclusões diferentes das minhas.
Foi o que resolvi fazer desta vez.
E Joseph Campbell tem ocupado um lugar especial no meu coração. Não pela sofisticação intelectual, mas pela vitalidade encantadora que transborda de suas palavras.
A obra dele recebeu críticas de muitos cientistas. Eu mesmo acho que ele faz uma leitura equivocada de Freud.
O valor que eu sinto ali, no entanto, não está vinculado à racionalidade científica, mas à qualidade poética do que ele diz.
Se você for como eu, vai achar um deleite.
[Sugestão de Consumo] Vá com calma. Leia cada citação pelo menos duas vezes, antes de seguir em frente.
(1) “A gente precisa se dispor a abrir mão da vida que planejamos a fim de encontrar a vida que espera por nós.”
Deixar-se guiar pelo próprio coração — e não por planos. Abrir mão do desejo de controle. Destemor e confiança. Abertura. Permitir que o que é vivo em nós se manifeste e nos direcione.
(2) “Seu espaço sagrado é onde você consegue se encontrar de novo e de novo.”
Na verdade, o que é sagrado não é o espaço, mas encontrar a si mesmo/a. Todo lugar, pessoa ou situação que permite o encontro consigo mesmo/a torna-se, por extensão, algo sagrado.
(3) “Qualquer que seja seu destino, o que quer que aconteça, diga: “Isso é o que eu preciso”. Pode parecer devastador, mas olhe para aquilo como uma oportunidade, um desafio. Se você trouxer amor para aquele momento — não desencorajamento — perceberá que existe força naquilo.”
Essa é a filosofia do Amor Fati, de Nietzsche. A Força que vem da aceitação incondicional. Render-se incondicionalmente à Vida. Requer uma alta dose de desapego. E, de acordo com a sabedoria oriental, premia com a maior das liberdades.
(4) “Qualquer desastre a que você possa sobreviver é um aperfeiçoamento no seu caráter, na sua estrutura, na sua vida. Que privilégio! É aí que a espontaneidade de sua própria natureza terá a chance de fluir.”
A gente vive como se coisas ruins não devessem acontecer. Mas obviamente essa não é a regra do jogo. Que sentido teria uma vida inteira só de coisas boas e momentos felizes? Abraçar a vida em sua inteireza, para além do véu de como gostaríamos que fosse, nos aproxima do mistério da existência.
(5) “Você é o herói (ou heroína) da própria história.”
Na real, acho que a maior parte das pessoas, hoje, vive a própria vida na condição de coadjuvante. O que é muito triste e não tem nada de heroico. O desafio é sair da periferia da vida, da posição de vítima das circunstâncias, e tomar a vida nas próprias mãos. O que te faz herói ou heroína é tornar-se a um tempo autor/a e protagonista da própria história.
(6) “A caverna que você teme adentrar guarda o tesouro que você busca.”
A noite escura da alma, que, dizem, precede o despertar de uma nova consciência. Na linguagem da Jornada do Herói, passamos pela Provação Suprema, o encontro com a Sombra, antes de podermos encontrar o Elixir que cura todas as dores.
(7) “Não acredito que as pessoas estejam buscando pelo sentido da vida, tanto quanto pela experiência de se sentirem vivas.”
O sentido da vida, para ele, não é um tipo de enigma a ser solucionado; o sentido da vida é estar vivo. Estar plenamente vivo dá sentido à existência.
(8) “Se consegue ver seu caminho demarcado passo a passo diante de você, você sabe que aquele não é seu caminho. Seu próprio caminho você faz com cada passo que dá. É por isso que ele é o seu caminho.”
A vida fora da mente é bem desordenada. Com frequência, as coisas só vão fazer sentido muito tempo depois. Eu, por exemplo, quando concluí o mestrado, tinha planejado trabalhar como psicanalista, no meu consultório, em paralelo a uma carreira acadêmica. O que eu até fiz, por um tempo. Hoje, nem um nem outro. Passei pelo Tribunal de Justiça, me envolvi com Empreendedorismo e Desescolarização, criei um projeto de educação infantil não-escolar e hoje escrevo, atendo pessoas por skype e estou criando um negócio digital. Ainda bem! Minha vida é muito mais interessante (e imprevisível) do que eu havia planejado.
(9) “Siga o que enche seu coração de alegria e o universo abrirá portas onde antes só existiam muros.”
Follow your Bliss. Essa frase é considerada a quintessência do pensamento de Campbell. E bliss é uma palavra danada. Ninguém consegue traduzir direito. Então, eu optei por uma expressão: ‘bliss’ = ‘o que enche seu coração de alegria’. A origem do termo, segundo Campbell, é o sânscrito: ‘ananda’. Que significa êxtase, beatitude ou felicidade suprema. Enfim, na filosofia de vida de JC, é uma boa ideia você buscar o que faz você se sentir assim.
(10) “O maior privilégio da vida é ser quem você é.”
Sócrates ecoa o Oráculo de Delfos: “Conhece a ti mesmo”. Já ouviu isso? Para os gregos antigos, cumprimos nosso destino humano ao amadurecer as sementes de realização que se manifestam por meio de nossos dons e talentos únicos. Nietzsche reformula: “Torna-te quem tu és”.
(11) “A vida não tem sentido. Cada um de nós tem sentido e nós o atribuímos à vida. É bobagem fazer a pergunta quando você é a resposta.”
Essa é matadora! A vida tem o sentido que a gente dá. Nós mesmos somos a resposta para a questão do sentido da vida… Basta se encarar no espelho.
(12) “A grande questão é se você será capaz de dizer um estrondoso ‘sim’ para a sua aventura.”
Então a grande questão não é sobre o sentido da vida, nem quanta grana você faz, onde você mora, com quem você sai, o carro que dirige, Pepsi ou Coca-Cola. Viver é algo mais do que sobreviver. Algo mais que conforto e comodidade. Envolve riscos e perigos. A aventura é ousar deixar a zona de conforto e mergulhar no desconhecido seguindo o caminho do coração, aonde quer que ele te leve.
(13) “A vida é como chegar atrasado ao cinema, ter de sacar o que tava rolando sem perturbar todo mundo com um monte de perguntas, e aí ser inesperadamente chamado de volta antes de descobrir como o filme acaba.”
Adoro essa imagem! Uma metáfora da condição humana simplesmente… cinematográfica.
(14) “O objetivo da vida é sintonizar a batida do seu coração com a batida do universo, sintonizar sua natureza com a Natureza.”
Isso é muito lindo. Como o coração do bebê, que bate no mesmo ritmo que o coração da mãe. Assim é. Assim é.
(15) “A eternidade não tem nada a ver com o além-mundo… É isso aqui… Se você não a encontra aqui, não vai mais encontrá-la em lugar nenhum. A experiência da eternidade bem aqui e agora é a função da vida. O paraíso não é o lugar para ter a experiência; aqui é o lugar para ter essa experiência.”
A função da vida é experimentar a Eternidade aqui e agora.
A função da vida é experimentar a Eternidade. Aqui e agora.
(16) “A gente precisa ter um aposento, ou mais ou menos uma hora por dia, em que a gente não sabe quem são nossos amigos, não sabe o que deve a quem-quer-que-seja nem o que quem-quer-que-seja deve a nós. Esse é um lugar onde podemos simplesmente experienciar e trazer à tona o que somos e o que podemos vir a ser. Esse é o lugar da incubação criativa.”
Vivemos seduzidos pelo ‘ter’ e abduzidos pelo ‘fazer’. Não é? Esta é uma prática interessante: reservar um tempo e um lugar para suspender o fazer, e o querer ter, para apenas… ser.
Respirar. Estar presente. Sentir a textura da existência. Você vai descobrir que tem um sabor diferente, simplesmente ser. De onde o que é verdadeiro pode emergir.
(17) “Se você de fato segue o que enche seu coração de alegria, você se coloca em um tipo de caminho que sempre esteve lá, à sua espera, e a vida que você deveria estar vivendo é a vida que você está vivendo.
Onde quer que esteja — se estiver seguindo o que enche seu coração de alegria, você estará desfrutando aquele frescor, aquela vida dentro de você, o tempo todo.”
Que tipo de sabedoria conduz a semente para que se torne árvore? Que tipo de inteligência a gente precisa desenvolver (ou apenas deixar atuar) para manifestar todo o nosso potencial — para amadurecer a verdade de nosso Ser? Que lugar, no interior de nossas existências apressadas, reservamos para nossas sementes de realização?
Um semente caída no asfalto. Pode ficar um bom tempo ali, congelada. Se, no entanto, alguma força externa a conduz até um punhado de terra fértil, ela naturalmente se reconecta com a verdade de seu Ser, seu potencial de realização. Ela desabrocha, cresce, floresce, frutifica. Pois aquele solo sempre esteve lá, à sua espera, e a nova vida que ela passa a viver é de fato a vida que ela deveria estar vivendo.
(18) “De repente, você é atirado/a na situação de estar vivo. E a vida é dor, e a vida é sofrimento, e a vida é horror, mas — meu Deus — você está vivo, e isso é espetacular.”
Para Heidegger, eis a questão fundamental da metafísica: Por que há o Ser e não, antes, o Nada?
Nossa consciência de ser desponta já em meio a situações definidas.
Como e por que existe tudo isso? Eu, você, a vida, o Universo? É assombroso que tudo exista! Seria muito mais lógico que nunca tivesse existido coisa alguma.
Para Joseph Campbell (assim como na filosofia budista, por exemplo), faz mais sentido substituir a ânsia por saber, essa busca ansiosa por respostas, pela experiência de deslumbramento, de arrebatamento, de assombro e deleite diante do mistério.
(19) “O sistema vai te achatar e te negar sua humanidade ou você vai ser capaz de fazer uso do sistema para a realização de propósitos humanos?”
As regras do jogo são antigas e bem arraigadas. Neste ponto da vida, confesso, cansei de tentar mudar as regras. Acho que a questão é mesmo esta: como usar um sistema que funciona atropelando nossa humanidade justamente para nutrir o que nos faz humanos?
(20) “O mundo sem espírito é uma terra devastada. As pessoas têm a ideia de salvar o mundo mudando as coisas de lugar, mudando as regras, e quem está em cima e assim por diante. Não, não! Qualquer mundo é um mundo válido se está vivo. A coisa a fazer é trazer vida a ele, e a única forma de fazer isso é encontrar em si mesmo onde a vida está e tornar-se vivo você mesmo/a.”
A aridez de viver apartado de si! Lembro bem. Como colocar meus dons e talentos, minha pulsação, para fortalecer o que serve à vida — e isto é importante — em qualquer situação?
Tem um livro clássico que ilustra bastante bem essa citação: O Homem em Busca de Sentido. É o relato de como o autor, o psiquiatra Viktor Frankl, sobreviveu a Auschwitz e a outros campos nazistas de concentração e extermínio ao se manter conectado com o que serve à vida. Mesmo na mais adversa das situações.
(21) “Meia-idade é quando você alcança o topo da escada e descobre que ela estava apoiada sobre o muro errado.”
Não sei você, mas até outro dia essa história de ‘meia-idade’, para mim, era pura abstração. Não mais. Essa frase é bem engraçada e faz sentido — mas não totalmente, pelo menos no meu caso. Jung chama esse processo de metanoia. Você olha para a primeira metade da sua vida e não necessariamente era o caminho errado; é que os interesses, as prioridades e as tarefas existenciais mudaram. É hora de partir em busca da vida não vivida.
(22) “Não há nada que você possa fazer que seja mais importante que tornar-se plenamente realizado/a. Você se torna um signo, você se torna um sinal, transparente à transcendência; assim, você irá descobrir, viver e se tornar a realização de seu próprio mito pessoal.”
Campbell é um estudioso de mitologia comparada. Mas ele chega a uma conclusão interessante a respeito da psicologia individual: cada um de nós tem uma mitologia própria. Que tragédia pode ser passar pela vida sem tocar seu mito pessoal — sua fonte anímica de vitalidade e realização!
(23) “Não podemos curar o mundo de seus pesares, mas podemos escolher viver com alegria.”
Um antídoto para a onipotência. Acho que a única maneira de, verdadeiramente, salvar o mundo é salvar a nós mesmos primeiro.